Editorial
EDUCAÇÃO, TECNOLOGIA E O DESAFIO DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Por Cassia Regina Souza da Cruz - Gerente de Educação - SENAI-SP
O tempo que habitamos nos apresenta grandes desafios. Não que outros períodos da história não os tivessem, mas a natureza dos desafios que temos hoje é bastante diversa dos que nossos antepassados tiveram que encarar. “Cada época possui suas enfermidades fundamentais”, afirma Byung-Chul Han em seu livro Sociedade do cansaço[1], hit literário do momento, lembrando-nos que dificuldades sempre existiram, mas que vivemos hoje um tempo de enfermidades neuronais que caracterizam estas primeiras décadas do século XXI, decorrentes de um contexto social que faz de nós seres estressados, doentes e cansados. Mas, ao lado dos desafios individuais que nos são impostos pela Sociedade do cansaço de Han, outros se colocam de maneira coletiva a quem vive e faz educação profissional. Falo do desafio de transformar a sociedade por meio de nossas práticas, possibilitando ou ao menos contribuindo para a formação de um mundo mais justo e menos desigual. Educação e tecnologia, juntas, podem ser protagonistas da transformação social que tanto almejamos.
A educação é esteio da sociedade, bem sabemos. Especialmente nos últimos anos, marcados por um contexto pandêmico, pudemos ter uma visão bastante clara dos efeitos da ausência do convívio escolar na vida dos estudantes, principalmente dos jovens. Mais do que conhecimentos ou competências, na escola desenvolve-se a própria vida. É no dia a dia escolar que moldamos nossos modos de ser e agir no mundo, construímos valores e sentido de pertencimento. Muitas vezes a escola é o único local de acolhida para problemas provenientes de um contexto familiar ou social complicado, e seus profissionais são a principal referência de um caminho a seguir. No contexto da educação profissional, além de tudo isso a escola também conduz ao desenvolvimento de uma profissão, que poderá mudar os rumos da vida de cada pessoa de forma única. A consciência desse papel de tamanha relevância não nos habilita a permanecermos em uma cômoda passividade. Ao contrário, nos convoca à ação. A transformação social a qual somos chamados a protagonizar tem seu início dentro das nossas salas de aula e laboratórios. Cabe-nos agir, movidos pela convicção de que educação profissional e tecnologia juntas tem feito muito, mas podem fazer ainda mais.
À tecnologia cabe o papel fundamental de viabilizar uma sociedade que, para além do contexto de adoecimento neuronal, também nos traga possibilidades nunca imaginadas, e que facilitam nossa vida sobremaneira. Pelas mãos da tecnologia vivemos hoje um mundo de comunicação instantânea e alternativas quase infinitas de interação. O desenvolvimento tecnológico trouxe o esmaecimento das fronteiras e o fortalecimento dos negócios num contexto global. Trouxe também transformações nos processos produtivos, bem como novas exigências e possibilidades profissionais. Ocupações até então inexistentes passam a constar entre as pretensões de carreira dos mais jovens, e outras tantas que ainda nem existem provavelmente farão parte da vida adulta das nossas atuais crianças. Por meio da tecnologia somos convidados a um futuro que já se faz presente.
No entanto, uma grande parcela da população brasileira encontra-se ainda hoje alijada de toda essa realidade promissora que a tecnologia configura. São jovens e adultos que tiveram seus percursos escolares deficitários, por inúmeras circunstâncias, ou pior, que nem tiveram a chance de concluir seus estudos. Em 2021, dentre os jovens de 19 anos, 65 a cada 100 não haviam completado o ensino médio, sendo que este percentual se altera quando relacionado a outras variáveis além da idade. Enquanto 74% dos jovens brancos de 19 anos têm o ensino médio concluído, entre pretos e pardos esse percentual é de 64,6% e 58,8%, respectivamente. Também o fator renda afeta consideravelmente as chances de conclusão da educação básica. Enquanto nos 25% mais ricos da população, 88% dos jovens de 19 anos apresentam ensino médio concluído, nos 25% mais pobres esse número cai para apenas 54,5% dos jovens. [2]
Esse cenário de desigualdade, que se inicia na educação básica de nossas crianças e jovens, estende seus efeitos para a vida adulta e produtiva. Segundo dados da RAIS 2019 disponibilizados e analisados pelo Observatório da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho[3], a remuneração média dos trabalhadores varia sensivelmente conforme a sua cor. Enquanto trabalhadores brancos percebem remuneração média mensal de R$ 3,2 mil, para pretos e pardos esse valor é de R$ 2,2 mil. Adotando também a variável gênero, numa perspectiva interseccional, podemos verificar que mulheres brancas percebem cerca de 77% do rendimento de homens brancos, enquanto para mulheres negras esse número cai para 54% do rendimento do mesmo grupo de homens.
Poderíamos aqui discorrer sobre diversas variáveis que vão se somando num cenário de exclusão, como deficiências, raça/cor, gênero, origem, idade, entre tantas outras, e sobre como dinâmicas sociais excludentes impactam na vida de segmentos populacionais vulneráveis, mas este texto se tornaria demasiadamente longo para um editorial. Não é esse nosso foco. O que desejamos aqui é assinalar o papel fundamental da educação profissional e da tecnologia como aliadas na construção de um contexto social mais justo. Importa tomarmos lugar nesse debate e não nos omitirmos perante os desafios que nos impõe nosso fazer educacional. É exatamente este o papel que a presente publicação assume, dando voz e lugar ao saber que emerge de nossas escolas e faculdades, pelas mãos de quem faz a educação profissional do SENAI.
Por meio da divulgação científica destes saberes, nós queremos ainda mais. Queremos que educação profissional seja reconhecida como uma possibilidade real e um caminho viável a quem sempre esteve à margem da vida econômica e social, e para quem quase tudo foi negado – o conhecimento, o trabalho, a dignidade e, por vezes, até a sua própria identidade. Queremos que o debate sobre tecnologia e profissões do futuro faça parte do cotidiano de qualquer pessoa, que jovens periféricos ocupem, por meio da educação, lugares dos quais não foram sequer expulsos, por nunca terem chegado. Queremos viabilizar e incentivar o acesso de mulheres à formação que conduza a profissões mais valorizadas e com perspectivas de ascensão, em especial aquelas ligadas ao desenvolvimento tecnológico. Queremos que a cor da pele não defina quão alto uma pessoa pode ascender em termos de realização pessoal e profissional.
Queremos, por fim, que educação e tecnologia sejam os alicerces dessa transformação pela qual nossa sociedade necessita passar e a qual nos cabe endereçar, para que, num futuro muito próximo, o acesso a um trabalho de qualidade e a uma vida promissora seja definitivamente direito de todas as pessoas.
Referências
[1] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
[2] TODOS PELA EDUCAÇÃO. Educação já 2022: contribuições para a construção de uma agenda sistêmica na educação básica brasileira: dados IBGE e PNAD contínua. Abril de 2022. Disponível em: https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2022/04/educacaoja2022-abril02-todospelaeducacao.pdf?utm_source=download&utm_id=documento . Acesso em: 03 out. 2022.
[3] SMARTLAB. Observatório da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho: iniciativa do MPT e da OIT Brasil. 2022. Disponível em: https://smartlabbr.org/diversidade/ . Acesso em: 30 set. 2022.